Brasileiro Baderneiro da Silva, por Elisabeth Zorgetz

Elisabeth Zorgetz
Divulgação

Esse país não conhece o cotidiano de uma guerra. Não conhece, ainda, suas vibrantes razões. Se nega a compreender o sangue correndo, a parede derrubada, o corpo pintado. É a nossa história: o Brasil não conheceu na carne os terrores das grandes e pequenas guerras, salvo seus breves estouros regionais e exclusivistas. Ainda se estranha o som das explosões, os gritos desvairados, o romper dos portões. Algumas horas a mais preso no trânsito é o limite do transtorno que esse brasileiro pode aguentar. Enxergar o patrimônio-privado-símbolo-da-exploração sendo agredido então, deus nos livre! 

A realidade, no entanto, passa muito longe dessa farsa de uma sociedade pacificada. O Complexo da Maré está aí para falar por si. O trabalho escravo, servil e infantil nas obscuras lavouras do interior também. A extensão da violência e repressão dos direitos da mulher. Estupro, pedofilia, gênero-cídio. Estrangulamento da supervivência dos povos nativos. 5018,15 de tributação por alma, só esse ano. Criança sem comer o dia inteiro na escola pública. Uma correnteza de gente que sabe plantar e não tem onde pisar. O jovem negro que morre e só decomposição na periferia. Imperialismo religioso, macumba aqui é crime. O Estado que se cala quando oprimem o amor. Morte no trabalho, reificação do homem. Lixão. Suicídio, degradação, pornografia na classe média. O transporte público atingindo o limite físico do cidadão. A violência de verdade é conjuntural, é social.

Quem viveu os anos de chumbo hoje defende a família e a boa moral, mas põe goela abaixo um modelo neo-desenvolvimentista que ataca direitos tradicionais, flexibiliza a legislação trabalhista, aprofunda o fosso das desigualdades, permite que o setor latifundiário movimente as pautas de exportação. Nunca antes os bancos, ícones do risco e falência econômica de nações, ganharam tanto. Esse poder instalado cria uma cisão entre esfera alta e baixa de consumo, tornando aparente a ascensão social e, ao mesmo tempo, tornando inalcançável o real desenvolvimento humano. O Estado, refém e cúmplice dessa teia econômica, dia após dia, degrada terrivelmente a condição humana. Mas o povo tem condições de libertá-lo, e o fará, a opinião pública permitindo-o ou não.

Se a violência é necessária para a desconstrução dessa democracia que não tem mais sentido, que perdeu a máscara que a representa, que ela opere, que seja essa a condição. A sociedade que hoje condena os vândalos famigerados é a mesma que lavou as mãos à construção política pós-ditadura, que permitiu que a democracia se deformasse a esse ponto. Paguem o preço pela irresponsabilidade social. O vidro estilhaçado na rua é caos necessário para a reconstrução ideológica e também, palpável, desse país. Para se fazer um omelete, tem que se quebrar alguns ovos! Homens e mulheres criticaram durante anos a juventude por não sair às ruas, e hoje, quando ela sai, também é criticada. Em Ilhéus, especialmente, se espera que o povo proteste higienicamente, tomado de prudências morais. Ora, por favor!

Não faço uma defesa crua da violência. O que defendo é a história. O movimento de massas necessita construir sua capacidade de radicalização para modificar as estruturas. Essa é uma realidade que se impõe. Essa reação não se tornou um padrão sociológico à toa: as imposições e truculências do Estado direcionam o povo à hostilidade. Um grande senhor não senta para dialogar com o povo porque os despreza, mas porque teme suas verdades. E o povo carrega todas as verdades do sofrimento do mundo. Contra elas, há pouco o que se contestar.

A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.